30 setembro, 2009

Se a vida fosse mesmo dois dias: estava lixada. O polegar já programado para actuar naquelas horas em que nada faz sentido, carregava desmotivado no comando de números gastos, ornamentado com a fita-cola que lhe adiava a reforma. O telemóvel inanimado em cima da secretária, habituado a ser alvo de olhares descrentes, parece indiferente ao ambiente taciturno que se vivia naquele quarto: mais uma vez. Ficava assim, sempre que não tinha a mente ocupada com qualquer trabalho exaustivo, ou o espírito entretido com uma daquelas reconfortantes visões utópicas que tão bem a fantasia sabe desenhar. Habituara-se a fazer dessas imagens coreografadas ao pormenor, uma alternativa bem mais eficaz à contagem dos carneirinhos. Tornou-se a única solução para a quebra da rotina demolidora, e verdadeiramente desastrosa, a que, desde certo dia, se tinha aliado: não dormir. Pior que isso: não dormir por razão nenhuma. Mas através desse seu novo método de escape, a fuga para a conciliação com a noite estava facilitada, e a ordem regente durante o dia, restabelecida. Pelo menos dentro do imaginário dela, não do possível.
Afigurava-se muitas vezes de mochila às costas e máquina fotográfica na mão, deslumbrada pela beleza das aldeias gregas, do branco, indiscutivelmente puro para os seus olhos fascinados, e daquelas falésias detalhadamente recortadas pelo mediterrâneo. Noutras vezes, era com o seu cavalo preferido que percorria as planícies alentejanas, de encontro a quem merece mais do que recebe, levando consigo mimos e pózinhos de vida, de paz. E as flores que a esperavam à porta sempre que chegava a casa depois de um dia generosamente atribulado? E os sorrisos e os abraços de que se orgulhava tanto de dar, sem medo, sem racionalizar: sem ser diferente. Se era impossível, ela fazia-o: todas as noites, no silêncio negro do conformismo.
Mas agora estava ali, chateada com o tempo por chamá-la à razão, ansiosa pela chegada do depois, depois, depois de amanhã, sempre tão mais fácil de viver que o hoje.
Um dia. Um dia vou conseguir. Num ápice de revolta contida, desliga a televisão e olha mais uma vez para o telemóvel. Nada. Tens a certeza? O aparelho parece permanecer indiferente à sua presença torturada. Decidida mas contra vontade, agarra nas folhas amarelas espalhadas sobre a cama e atira-as pela janela. Como quem foge da própria sombra, agarra apenas nas chaves e sai de casa no mesmo minuto, como se esta estivesse a arder.
Na rua, os transeuntes seguram nas mãos perplexas, pequenas folhas amarelas escrevinhadas a lápis, aparentemente caídas do céu.
No interior da casa, o telemóvel toca.

29 setembro, 2009

Espada de dois gumes.

"Por isso escrevo esta história. Porque sinto a sua falta muitas vezes. Gostaria de lhe perguntar se ela se lembra como eu me lembro, mas sei que sim. A Cláudia sempre gostou de desaparecer, mas isso não significava, de modo algum, que as coisas lhe fossem indiferentes. Eu sei que ela se lembra, sei que foi feliz então, como eu fui. Mas deve achar que eu me esqueci, que me fechei no meu silencio, que me zanguei com o seu ultimo desaparecimento, que vivo amuado com ela desde então. Não é verdade, Cláudia. "
in "No teu Deserto"