É preciso limpar Lisboa. É preciso, eu preciso. Arrancar
a sujidade, a vaidade da boca do povo. Varrer as cinzas das manhas e dos aforismos.
É preciso esfregar as nódoas dos descuidados e dos crédulos, as dedadas dos que
mentem, prometem, enlouquecem. Varrer a poeira dos que não pensam, não deixam
pensar, ousam pensar, ousam alentar. Dos que amam.
Eu preciso, é preciso. Lavar as paredes que não
quiseram ouvir, polir o chão que o fogo entorpeceu, esbarrar contra os olhos de
quem não se prendeu. É preciso desencardir as almas pisadas, limpar as lágrimas
esbatidas nas janelas e nas escadas, banhar recantos e crenças, carpir passos e
corações. É preciso, eu preciso. Apagar palavras, caiar mágoas, calar memórias,
sufocar anseios, desdenhar compaixões. Rasgar as toalhas barrentas, os lençóis sofridos,
sacudir de fés e expectativas os tapetes humedecidos e as cobranças
encurraladas. Eu preciso, é preciso. Destruir o tempo, abafar a música, garrotar
a dor. A dor. Dilacerar as cartas e despedaçar nós, esquecer dedos, perdoar
mãos. Atear fogo às esperanças, aniquilar as coincidências, raspar os factos, aspirar
as saídas e dissimular as soluções. É preciso arrastar os móveis, os laços, os
embaraços, livrá-los dos medos e das paixões. É preciso, preciso. Fechar os
olhos e esperar que Lisboa nasça sem sol, sem lua, nem ruas. Que Lisboa
adormeça sem rio, sem luz, sem deus. É preciso que Lisboa viva sem sonhos. Respirar
fundo e esperar não ouvir mais fados, nem os achados das noites não dormidas. É
preciso cortar as amarras à força, esbater o castelo, correr as colinas,
distorcer as esquinas e vendar as fotografias. É preciso perceber que nada faz
sentido, nada tem um sentido, e que, o ter sentido, não é razão para o ser. É
preciso parar de olhar para ti e fixar Lisboa como quem olha para amanhã. É
preciso apagar-te a ti, aos teus ditos e aos teus gestos, e recomeçar Lisboa. É
preciso limpar-te e recomeçar-me, enquanto assisto ao teu recomeço.
Recomeçar, reescrever. Não por ser preciso, mas por ter de ser.
Recomeçar, reescrever. Não por ser preciso, mas por ter de ser.
N.G.