30 março, 2008

26 março, 2008

V

Se o mundo fosse uma grande tela branca e a mim me fosse dado o direito de a pintar, eu usaria todas as cores que não conheço, todos os traços e formas cujo nome me é estranho, todos os rostos que ainda não conheci, todos os lugares que nunca vou conhecer. Nas ruas estreitas de calçada rude, desenharia pés descalços e enegrecidos pela poeira, correndo atrás de uma velha e esfarrapada bola de trapos. À porta das casas de paredes brancas e janelas azuis, sentadas sobre o pequeno degrau da entrada, senhoras fariam rendas e picôs, trocando experiências e deveres com as demais, sempre atentas às brincadeiras e travessuras dos mais pequenos. As cidades seriam pequenas povoações espalhadas aqui e acolá, que entre si apenas diferiam no lugar onde se tinham estabelecido. Em cada centro e em cada avenida, a música viria de todo o lado: do chão, das paredes, dos arvoredos, do céu, das fontes, e principalmente, das pessoas. Não haveria quem não cantasse por essas ruas fora, fosse por que razão ou por que sentimento mais forte, ninguém teria vergonha de o cantar aos ouvidos do seu mundo. Melodias e canções improvisadas se misturariam numa combinação perfeita na brisa sempre amena com aromas de alecrim. Quando a felicidade era unânime, as ruas outrora locais de trabalho ou passeio, viravam verdadeiros palcos movediços, onde personagens reais dançariam em sintonia com seus companheiros de vida e com a sua própria música, em passos desde sempre sabidos e bem ensaiados, como uma onda que cresce em alto mar, mas que jamais chega a morrer na praia.
Aqui, nunca ninguém se sentiria só e a tinta não desbotaria com o tempo. A ilusão não seria pura, traria escondida entre seu mar de nevoeiro, verdades esvoaçantes prontas a aterrar sem pára-quedas. As diferenças seriam respeitadas e tidas apenas como sinais particulares de riqueza. E a dor… essa andaria sempre de braço dado com a esperança que, em suas mãos de seda, guardaria com mil cuidados e doçura a certeza de uma recompensa feliz, desde o princípio esperada ansiosamente. Sofrer seria inevitavelmente sinónimo de crescer, e mais, toda a gente saberia disso.
Se o desejo fosse esse, num sopro suave e veloz perderíamos, durante o tempo necessário, a forma humana para um estado de invisibilidade aos olhares alheios, para numa certeza reconfortante ver justificado no vazio o porquê da indiferença sentida e para que as lágrimas fruto das palavras não ouvidas e das flores não beijadas, pudessem correr em liberdade, sem a condenação de mentes julgadoras, questionando matérias sem resposta.
No meu mundo perfeito, tu olharias a lua e lembrar-te-ias de mim.

13 março, 2008

Because of you.

Recuso-me a responder. Porquê fazer essa pergunta quando a questão que me queres colocar na realidade é “estás viva?”. Talvez aí eu te respondesse, mesmo que correndo o risco de te mentir.
Mas não. Em vez disso recorres sempre àquela mesma inútil e vaga pergunta de quem na verdade não quer ouvir a verdadeira resposta. Não, não está tudo bem. Está tudo errado. Totalmente do avesso. Surpreendida? Não estavas à espera pois não? E agora, o que vais fazer? Nada. Não porque não possas mas porque não sabes. Se te culpo por não saberes? Não. Mas culpo-te por não tentares perceber o que há para além de ti, por não seres humilde o suficiente para reconhecer os teus erros e o facto de não seres a única pessoa que sofre neste mundo, ou que muito menos essa tua dor é mais importante ou menos suportável do que as outras. Por não quereres aprender a crescer e a te libertares desse ser egocêntrico e intolerante que te rasga a alma e te cega o espírito. Egoísmo que atribuis àqueles que te querem ajudar e que acima de tudo não querem cair no mesmo poço que tu. Dizes-me que fazes tudo o que podes? Não, não fazes. Não sei se porque assim viste fazer ou porque achas que é o que está correcto, mas é com pena que te digo que esse tudo resume-se à supressão das necessidades básicas, aquelas que representam o suficiente para qualquer ser vivo sobreviver. Mas como ser humano precisava de muito mais. E ainda preciso. Se estiveres disposta a mudar, também eu tentarei reaprender a aceitar, a receber e valorizar qualquer tentativa, qualquer esforço de proximidade e cumplicidade que possa vir de ti. Não quero que estas minhas palavras te catapultem para um abismo distante ou que te sirvam de pretexto para seres ainda mais infeliz do que já és. Quero que as encares com a crueza com que eu tas escrevi, e com o mesmo espírito aberto com que eu aprendi que caminho não deveria seguir, para não cometer os mesmos erros que tu. Sei que não o suportarias ouvir, nem eu seria justa se te dissesse que toda a minha dor nasce em ti, por mais mágoa e revolta que sinta por nunca em ti ter encontrado aquele porto seguro, onde uma voz doce nos promete que tudo se vai resolver, como nos filmes e novelas de finais felizes ou como naqueles personagens reais que encontro todos os dias na rua, no autocarro… olhares prematuros que, como o meu, ainda pouco conhecem do mundo mas que nessa espera ansiosa pela vida prometida sabem o quanto é bom sentir um ombro amigo sempre por perto, que melhor do que ninguém nos deveria conhecer e compreender, sem julgar, sem porquês. Se ter inveja é mesmo pecado, então eu sou culpada.
Se a vida não te deu o que querias, não insistas em nos fazer acreditar de que não há retorno quando numa porta escolhemos entrar. Mesmo que isso seja verdade, és tu quem nos deve convencer de que é mentira, de que há sempre outra oportunidade. Tenta encontrar em ti a melhor forma de te reafirmares como pessoa livre e independente, e ao mesmo tempo de me ensinares tudo aquilo que eu ainda desconheço e que é teu dever me ajudares a viver. Foi para isso que Deus te criou. Viver… talvez seja essa a palavra-chave do que trago preso no peito desde que me lembro e que me levou a escrever-te. Viver, no seu mais nu e puro significado… Sabes o que é? Eu ainda não sei, mas sinto que me falta pouco para lá chegar… Preciso de pelo menos mais uma coisa, a mais importante sem dúvida: que não me prendas àquilo que gostarias que eu fosse e me ajudes a melhorar aquilo que quero ser. Diz-me para não ter medo...
E de uma coisa nunca duvides, não há ninguém com quem eu me pareça mais do que contigo.

04 março, 2008

IV

Comecei o dia a pensar em ti. O vidro da janela do meu quarto parecia não suportar a imensa fúria do vento que impetuosamente esmagava pesadas gotas de chuva contra um difuso e distante reflexo, triste, que parecia enclausurado lá fora, por entre a maré revolta e demolidora deste vento que não dá tréguas e desta chuva que teima em cair quando já não é devida. É noite…Ainda o sol não se atreveu a despertar para quase inutilmente tentar impor-se por entre as grandes nuvens negras que sem remorsos entristecem este dia que ainda não começou, assim como este ser que me olha fixamente do lado de fora... olhar pesado, interrogador, de quem não entende o porquê de estar ali. Rosto que busco por entre os corredores enevoados da minha memória, olhar que se esconde por entre as sombras da noite e que parece gritar em silêncio por alguém que o leve para porto seguro, longe desta gélida noite de Inverno.
Levanto-me. É hora de começar a despachar-me para a ainda longa viagem que me separa de quem eu preciso.
Uma distância que percorro ansiosa, mas nostálgica... É, sempre gostei de viajar, de percorrer com os meus olhos todos estas ruas e planícies, de inspirar com fervor o cheiro molhado da terra lavrada, inalando o fresco aroma dos pinheiros e das doces mimosas, de reconhecer aqui e ali lugares que me são familiares, apesar de nunca os ter visitado na maioria dos casos, mas reconheço-os à distância, pela naturalidade e simplicidade imutáveis com que percorrem o tempo e nos contam histórias imortais gravadas nesta terra e guardadas no silêncio destas ramagens, que não conhecem mais nada para além do lugar onde nasceram. Como isso lhes é suficiente e tranquilizante.

Chegámos. Sinto já o cheiro do limoeiro que desde sempre me recebe junto à porta desta casa onde gerações cresceram e aprenderam a viver. Como está grande o meu pequeno Figo... e como parece contente apesar de todos estes anos que já cumpriu neste lugar que lhe destinaram sem outra escolha lhe oferecerem.
A horta, os animais, a terra, as pedras com que a minha imaginação de criança se deliciava horas e horas. As paredes caiadas, o telhado velho, o chão gasto, o casão, a cabana improvisada de tantos anos, a pequena varanda de onde viajo incansavelmente de estrela em estrela em noites quentes de verão. Os caminhos de terra, o poço, a figueira, tudo no lugar que lhe pertence, tudo como sempre conheci. E por momentos, sinto que o mundo é perfeito, ou pelo menos este, também meu lugar, aqui, em pleno alto Alentejo.

O mesmo sorriso de sempre nos aguarda junto à porta. Espelho de uma alma desgastada pela vida de trabalhos no campo onde sem folgas ou muito menos férias, se vive um dia de cada vez… E de sapatos gastos e roupa velha, seja na geada ou sob a chuva que filtra os escassos raios de sol no Inverno, ou debaixo do esgotante e arrasador sol de verão, os afazeres no monte parecem nunca ter fim. Rosto cansado, de quem dos deveres nunca descuidou, nem sabe o que isso é. Não são escolhas, são necessidades que ditam com o hábito aquilo em que cada um se torna e se transforma de corpo e mente e, para quem vive no campo, sem retorno também. Essas pessoas podem até mudar de vida, mas felizes longe deste seu mundo, não o serão jamais.

Olho o céu agora limpo, e recordo um dos meus sonhos mais bonitos. Livre, voava sobre a casa, sobre as árvores, percorrendo a vários metros do chão a estrada que parte do monte e que descansa no horizonte. Como foi bom sentir a brisa morna bater-me na cara, como é feliz a liberdade.