18 janeiro, 2017

Voo.

Atrasas-te. Desces as escadas a correr, ligas o motor, tu não podes morrer: apressa-se o pensamento, precipita-se contra o tempo e incendeia-se em dor. Foges. Rompes a madrugada fria, rasgas o vento, livras-te do sentimento, e aceleras. Vapor de água, névoa gelada, que se agarra e te transforma num nada que evapora: e te cega. Piloto automático. Depressa! O relógio não pára! Desvia, atalha, decifra. Esquece. Olha para o melro afoito, imponderado, coitado, que plana sob o embalo dessa brisa que flagelas comiserado, olha como finta o teu olhar vidrado, adormecido em sonhos afortunados, e tudo em ti vira criança e esperança. Olha como a curva se desfaz e se estende, em gritos de chapa, pânico de gente, nesse alvoroço em que embarcas clemente, confiante de que mergulhas nos olhos verdes que procuras, esses feitos de estrelas que impedem a noite de ser crua, e onde te deixas ficar: aninhada e segura, sob esse telhado de infinitude celeste, onde a solidão não se veste de prece: onde a tua casa são os olhos verdes que não te abandonam, os que ficam, os que te assombram, os que protegem e mantêm vivos, os sonhos que julgavas perdidos. Esses olhos verdes que cuidam, mas não compreendem. Estilhaços, éter, trovoada, e apenas mais uma madrugada. E silêncio.