30 setembro, 2008

Sou.


Um misto de vontade e submissão.
Um fôlego de esperança, um arrebatamento de evidência.
Um pedaço arrancado e acorrentado ao peito.
Um desejo de ir e a promessa de ficar.
Uma resposta. Duas perguntas.
Uma cópia do vivido e consumado.
O desconsolo. O fogo retratado.
Todos os futuros, filhos de um só passado.

Um acorde. Uma palavra. Tantas vidas.
A folha. O vento. O instante interrompido.
Uma incerteza entre tantas certezas incertas.
Alguém que quer ser e não sabe como.

22 setembro, 2008

Outono

Quando a Eva me contou que te tinhas mudado eu não acreditei. Não que isso não pudesse acontecer, afinal a casa já não vai para nova, mas sempre achei que isso não estivesse nos teus planos, pelo menos por agora. Pelo menos dessa maneira.

Cheirava a chuva e a pipocas doces. O ar estava despropositadamente abafado. Ia a caminhar para o carro, quando uma voz inconfundível e familiar adivinha o meu nome. O rosto remetente sorria: uns olhos grandes, dos quais nunca consegui decifrar a cor, atravessavam-me, doces e desassossegados.
Ainda nessa manhã, como poderia ter sido noutra, como era em todas, eu olhei para ele. Desde o dia em que mo deste que o guardo naquela gaveta. Ofereceste-mo, mas não me explicaste como deveria cuidar dele. Já pensei em pô-lo num vaso de pé alto ao pé da orquídea e regá-lo, esperando que recuperasse o brilho de outrora, mas ele não me pareceu muito agradado com a ideia. Uma tarde destas, peguei-o com jeitinho e pendurei-o por uma corda na varanda, confiando que quando sentisse o ar e o aquecesse delicadamente, rejuvenescesse e se lembrasse dos seus tempos de glória e de ser imprescindível e admirado, por tudo quando é ser vivo, que era. Mas também não resultou. Resignada, voltei a guardá-lo na gaveta da mesinha de cabeceira: um Sol abatido, fosco, de raios franzinos, lamentando-se, em silêncio.
Ela não se apresentou. Sabia que não precisava apresentar-se, assim como sabia que eu nunca a tinha a visto, assim como sabia que eu não a conhecia, assim como sabia que eu sabia quem ela era. Contou-me como passou por ti e te cumprimentou e tu fingiste que ela não estava lá. Contou-me como te perguntou o que estavas a fazer e porque tinhas o carro carregado de tudo. Contou-me como tu a olhaste: olhar vazio, inundado em dúvidas construídas sobre certezas: umas que conheces, outras que nem tanto. Explicou-me como, sem palavras, lhe pediste que não fizesse mais perguntas e que te deixasse sozinho. Disse-me que estava preocupada, e foi-se embora. Não sei para onde foi, mas eu não esperei para ver.

Foi assim que soube que te tinhas mudado. Não te telefonei a perguntar porquê, nem para onde, porque ainda antes de partires, disseste-me que tinhas voltado. E há vazios que pressupõem a inexistência de perguntas.
De todas as vezes que por lá passei, olhando de forma mais ou menos discreta, mais ou menos convicta, de todas as vezes, encontrei a janela fechada e a persiana corrida, com apenas um palmo, o mesmo palmo, de janela descoberta até ao parapeito. E de todas essas vezes, atravessei a rua, devagar, e através da noite espreitei pela persiana quase fechada. Uma noite mais negra que a da rua vivia-se no interior da casa.
Foi tudo o que fiz e culpo-me por isso. Apenas por isso.

Há momentos perpétuos e instantes mágicos. Ou porque assim nasceram ou porque assim as pessoas o viveram. Há palavras quase perfeitas, que preenchem os dias de forma perfeita. Porque o dito não pode ser dado como não dito, quando é dito de forma quase perfeita, apenas porque perfeito nada o é.
E há pinturas resplandecentes que atraiçoam o olhar e o acusam de cegueira e de falta de autoria...

11 setembro, 2008

Pedaços

Antes que deixe de fazer sentido: também. Antes que se consuma, ou se reduza a pó, ou antes que o pó se derreta em formas esquivas e descuidadas. Antes que se arraste cambaleante para a inutilidade. Não: é porque já fez parte: já foi sinónimo, já foi definição. Mas hoje já não tem chão. Talvez não sejam boas razões…
Então, porque hoje é o dia de hoje. Está melhor?

09 setembro, 2008

Nove.

Ela sabia que esse dia lhe pertencia. O terror desmesurado que trazia consigo desde aquele dia, logo se emancipou, selando-lhe os sentidos. O instinto incontestável de sobrevivência percorria-lhe o corpo, imóvel, zelando para que os seus pés se enterrassem na areia inquietantemente fria que abraçava o louco mar à sua frente. A sua paixão pelo mar era incoerentemente profunda. Mas o medo perante a imensidão onde não se conhecem tréguas, a deslocavam para casulos claustrofóbicos onde a única saída é a cega profundidade. Mas a única carreira ainda de partida era aquela. Em frente.

A espuma salgada fervilhava sobre a pele anestesiada, como um sangramento efusivo e descontrolado em contramão. O peito gelava, numa contagem decrescente de vida e crescente de liberdade. Não olhou para trás, porque esse caminho já o sabia de cor. Era em frente que queria ir. Era para baixo que o vazio sob os seus pés a levava. Foi quando a maré a trouxe: perfumada, decorada pelo luar: longe. Como um sopro asfixiante, sentiu-se elevada pelo colo da onda e envolvida no seu cobertor maternal: que em seus braços de frescura aconchegou-a, e perdeu-a para a escuridão. Para o nada. E é nessa altura que, à velocidade da luz, como um efémero arrepio, se sente vestida por um leve e incontornável arrependimento. Um som de pânico lhe percorre as entranhas. Sente os ouvidos esmagados pelo silêncio mergulhado. Os olhos suplicando por luz, fecham-se, contrariados pela evidência. O pensamento não existe: alivio. Pânico. Apenas porque tem de ser assim, movimenta os braços e as pernas em gestos largos e pouco decididos. Rendeu-se, mas não desistiu. Por fim desistiu, mas não perdeu a esperança. Sabe por que não a perdeu, mas não sabe por que a tem. Deixa-se levar pelo peso descoordenado do próprio corpo até à escuridão. Os pulmões gritando por vida pareciam querer rebentar dentro de si mesmos. Um ardor cortante a percorre por dentro. Vozes imperceptíveis sem remetente eclodem de todos os lados. Imagens mais que nítidas lamentam as escolhas. Rostos sãos e tristes relembram o que não volta. A dor de todas as horas que não renuncia…
Noite. Nove. Estrelas. Liberdade.


(Posteriormente publicado em
Fábrica de Letras, desafio de Agosto "Uma longa viagem".)