30 junho, 2008

IX

Chegámos. Desde a primeira visita que fiquei deslumbrada com este bairro: Aparentemente calmo, vizinhos tantos quanto basta e duas ruas enveredadas em espaços verdes. Exactamente como eu gosto. Orgulhosa pela minha tão feliz escolha (talvez de longe a menos pensada), retiro a chave da ignição e saio do carro, um renault clio azul, recentemente comprado. Empolgada com a importância do momento, faço caminho até à porta do prédio e, pausadamente, absorvo cada instante, cada silêncio e cada ruído distante, cada movimento ocasional, cada gesto propositado, respiro fundo e digo… “Estamos em casa”.
Mal abro a porta, sinto o cheiro a tinta fresca que percorre ainda a longa escadaria, de vidrais virados para poente. Percorremo-la devagar, prolongando a ansiedade, construindo os alicerces para as saudades que ainda estão para vir. – “Abre tu” -peço-te, estendendo-te a chave. Acedes ao meu pedido e descerras este nosso novo lar.
Ainda são muito poucos os móveis que a preenchem, dando-lhe um ar ainda mais espaçoso e arejado do que já realmente é. A escassa mobília de linhas direitas em tons cremes, condizendo com o pequeno sofá, parece em sintonia com o azul claro e disforme que perfaz duas das paredes da larga sala, numa das quais, uma enorme tela retrata um mar cristalino debruçando-se em ondas de espuma branca sob a límpida areia, como se vivo, despontasse da parede. O sol quente de fim do dia atravessa possante a grande janela de dobradiças brancas, ainda sem cortinas, espalhando seus raios firmes pelo chão luzidio. Desta janela, emerge uma comprida varanda sobre o jardim do prédio, recheado de amores perfeitos e rosas brancas. Abro o vidro até ao limite, para que o ar corrente que nos traz a rua nos encha de vida este nosso espaço.
Ficamos ali, olhando a rua e as pessoas que lhe dão um sentido. Respirando o sol que, sem pressas, se vai escondendo atrás do formoso chorão de galhos fartos. Sei que gostaste. Sinto-o. E isso é-nos suficiente.

A campainha toca... Como que quebrando o feitiço por obrigação.
Vou abrir. É ele. Uma voz hesitante de quem trespassou cercas privadas acaba por suspirar - “Desculpa se venho incomodar, não sei se estás acompanhada… Posso entrar? ”. Viro-me para trás, percorrendo com o olhar toda a sala. Vazia. Estendo o braço em sinal de recepção e um sorriso por escrever responde – “Estou sozinha. Entra.”

10 junho, 2008

Quero.

Quero a minha casa. Quero o meu quarto. A minha secretária, a minha cadeira, os meus marcadores, as minhas fotos, os meus livros, o meu rádio, as minhas gavetas, a minha cama, as minhas paredes. Quero a minha irmã, quero os meus pais, quero os passeios nos feriados, quero os domingos à tarde, quero as novelas da noite na sala. Quero as conversas no quarto até às tantas. Quero ouvir as gargalhadas e as corridas no corredor. Quero rir contigo, quero rir com eles. Quero a minha viola, quero a minha varanda. Quero a hora do lanche com ela. Quero o jantar com todos. Quero a hora do almoço deles. Quero as músicas infantis. Quero as brincadeiras infindáveis. Quero os filmes da Pipi. Quero o sair de carro. Quero o ir às compras. Quero o gelado ao pé do rio. Quero as visitas da minha madrinha nos sábados á noite. Quero ir jogar à bola com ela no jardim. Quero os passeios de bicicleta. Quero o meu gosto por estudar. Quero os meus horários malucos. Quero o futsal. Quero a dança. Quero as quintas á tarde na casa da Mena. Quero o voluntariado. Quero a minha escola. Quero os meus amigos. Quero a minha cidade. Quero a minha saúde. Quero a minha vontade. Quero o meu mar.
Quero voltar. Quero continuar.

Não quero ter saudade.


Um dia.

Um dia vou contar-te ao ouvido como foi, como é. Vou mostrar-te os rascunhos, vamos cantarolar juntos todas estas crónicas perfeitas que ouço enquanto apago o que escrevi, o que prometi não eternizar, nestes testemunhos rasurados, desbotados pelos transbordos salgados, que de dia são súplicas e à noite prantos. Um dia tu vais vê-lo. Vais folheá-lo vagarosamente e vais suspirar cada palavra despida, cada instante enclausurado.
Nesse dia, vais ler-te: insaciado, adormecido por entre as veredas espinhosas dos roseirais que plantaste. Fixarás o teu reflexo e descobrir-te-ás, estarrecido. Recordarás as pegadas que deixaste, desenhadas nos murais do ser insólito que repartiste entre teus submissos soldados. Já tarde, vais perceber o que te escrevo e porque te dirijo meus monólogos desencorajados. Não é por banalidades irresponsáveis. Não é por desejos carnais nem súplicas incoerentes. Não são declarações. Não são pedidos apaixonados, nem lamentos adolescentes. São frutos colhidos do mesmo ser, outrora rasgado e semeado em duas rectas perpendiculares, e que em portos ilusoriamente recuados fazem juramentos e quebram raízes que abatem a calçada. Abrem desvios pelo mato denso e palmilham descalços o inóspito firmamento. Destinos congénitos unidos erroneamente pela suposição. Um único caminho, percorrido a duplicar.
São estas as certezas de quem se lê de dentro para fora e se completa nas entranhas do que não é. Afinidades eloquentes entre vozes encanastradas, unidas e tecidas em quilómetros vastos de seda firme, pregadas nas palavras proferidas que carrego comigo, e nos silêncios que assentam na razão do que não foi uma escolha, mas que por louca obediência às crenças erigidas, se vive e permite, ainda que porventura sem saber, o alastramento da vida deste único ser.

08 junho, 2008

Música #5

Vinha a ouvir esta música no autocarro ainda agora (numa das muitas viagens que faço todas as semanas, já nem me lembro desde quando) e achei que seria uma boa música para vos deixar aqui. Gosto do dueto... Acho que são 2 vozes que se completam de uma forma muito especial. Só é pena não ser o videoclip, mas não deu para arranjar.

"Leve e que te beije, Meu anjo triste."


04 junho, 2008

Estado:


Revolta.

Porque não tem que ser tão dificil.
E, principalmente, porque há consciência disso.
Sabe-se o que fazer e porquê.
Sabe-se como.


Então,
O que falta?

03 junho, 2008

VIII

Nada. Era tudo o que conseguia ver. Tento a custo levantar as penosas pálpebras, escancarar minhas janelas para o mundo, para que lancinantes me quebrem a escuridão que me preenche os olhos. Pestanejo sofregamente para recuperar a visão inexistente mas continuo sem enxergar nada. Numa atitude já desesperada, levo as mãos aos olhos e esfrego incessantemente na ânsia de os conseguir pôr em contacto com a luz, mas em vão. O único sinal de vida que os meus dedos encontram, são poças a transbordar de água salgada, de um fundo negro em cicatrizes de guerra sobre as mágoas sepultadas. Assustada, entro em pânico e começo a gritar. Mas não consigo ouvir a minha voz. Grito ainda mais alto e continuo sem me ouvir. Descontrolada e sentindo a consciência a fraquejar, tento erguer-me da cama mas não consigo. Levo as mãos às pernas para tentar movê-las mas não posso. Elas não estão lá. Sinto a cabeça em queda livre para o vazio que não acaba nunca, a respiração arquejante, o coração enlouquecido que reclama liberdade e cada poro inundado de água fervilhante. Jogo as trémulas e gélidas mãos em todas as direcções, tão longe quanto me é possível alcançar, palpando o ar, tocando o desconhecido, na esperança de te encontrar.
Subitamente, o mais terno e suave dos toques me envolve e afaga as mãos entre as suas, acarinhando-as e enleando-as irreversivelmente entre seus laços de certas incertezas. E no mais confiante dos abraços me deixo desfalecer.