29 setembro, 2010

Assim como um dia o sol andou à volta da terra…

Enquanto as lágrimas lhe escorrem relutantes pela cara engelhada de constrição – não vão elas se esgotar pela tão forte torrente – ele esforça-se para se olhar de frente para o espelho. É um dos seus segredos: ficar assim, de olhos fixados nos seus, trocando o desfecho pela estrada, enquanto olha com pena aquele desconhecido, alagado por fora, seco por dentro, resumido à imagem que quem está de fora pode ver – ou sabe ver. Com pena, sim, porque não conhece um mal maior que possa oferecer àquela imagem vaga, que os outros encontram na rua e maquinalmente cumprimentam – Bom dia. Tudo bem? – e ele responde da única maneira que sabe – Sempre.
Depois, guardada mais uma pesada e não dada resposta, troca os suspiros por um espelho, agarra o tempo que vive calado com as duas mãos fechadas, e assim fica, até que a vergonha ou a falta de razões cessem as lágrimas, mais uma maré de tantas, e aos poucos se vá reconhecendo no espelho embaciado de pudor.
É nessa altura que sai de casa, e em passos largos e sedentos percorre até à exaustão física aquelas ruas que não foram feitas para carros, e que de tanto se perder nelas de forma propositada, já conhece tão bem.
Extenuado, aproveita então a escadaria da igreja para recuperar o fôlego, enquanto as pessoas que passam sem dar pela sua presença esbatida nos degraus empoeirados, lembram-lhe que o tempo não tira folga. É quando ele a vê. Parece não ter pressa, enquanto vaga entre a lufada de gente esfomeada que àquela hora se esgueira para casa ou para o restaurante do costume para recobrar as energias. Ele tinha que aproveitar aquele momento. Não podia deixar que ela se fosse embora sem sequer tentar falar com ela. A custo, como se o cansaço nas pernas se tivesse estendido a todo o corpo, e encandeado por aquele dia coberto de nuvens fulgentes, levantou-se das escadas, inspirou a meio gás, porque fundo já não o sabia fazer, e avançou na direcção dela.
Quando chegou ao seu encontro, ela empunhava uma máquina fotográfica acima da cabeça, apontando-a para o topo de uma árvore, já despido pelos primeiros ares do Outono.
- Olá - interrompeu ele - preciso de te pedir uma coisa.
Sem olhar para ele, ela começou a ver na máquina as fotografias que tinha tirado e voltou a apontar a objectiva para o céu
- Está bem. Mas primeiro eu preciso de ter a certeza que és tu.
- E como é que eu faço isso?
- É simples… - virando-se para ele, ela estende a máquina fotográfica na sua direcção e de um rosto sério que nela nunca antes vira, ele ouviu
- Dá-me um nome.
Ele aceitou a máquina com as duas mãos e ergueu-a na direcção dos olhos para a fotografar. Mas quando espreitou pelo pequeno ecrã da máquina apenas encontrou o tronco rasurado de uma enfraquecida árvore, desfolhada e amarela. Ela tinha desaparecido. E ele sorriu.

24 setembro, 2010

O frio tem destas coisas. E o pensar nele também.

Sair é fácil. Abandonar não custa. Dizer adeus é diferente. Implica dar a cara, dar a voz, inventar uma expressão que não pareça absurda. Ter a coragem de olhar para o lado ou a falta dela para olhar nos olhos. Para lá dos olhos. Dizer adeus é difícil. Acordar num dia de inverno é difícil. O querer não acordar, não ter que ver o dia nublado ou, na melhor das hipóteses, de chuva. Há quem diga que gosta de chuva. Eu também gosto de chuva. Quando não tenho que sair de casa. Quando estou na minha casa. Mas quando chove eu tenho sempre que sair de casa e nunca estou na minha casa. E depois lá vai ela, dividida avulsa de contornos assimétricos, entre aquela que enverga o tem que ser, em modo automático de manifestação, e a outra, a do nunca poderá ser. A última vai sempre guardada na mala, escondida das gentes – ou do céu nublado – espreitando de quando em vez com os olhos fechados, o ar húmido e triste das casas vazias de laços, que invariavelmente lhe chega aos ouvidos resistentes acompanhado do ruído do colchão da cama a ceder à passividade da desaceleração do ser, e da música a soar baixinho, indolente... O que nos vale é o chocolate. Como eu odeio o inverno.

14 setembro, 2010

A fonte

Em frente ao velho espelho enferrujado, ele lavava as palavras antes de as repensar. E enquanto as soletrava apertadas entre si, perfumava-as e enfeitava-as com todas as vírgulas e entoações que conhecia, experimentando-as, atraiçoando-as, enquanto ousava combiná-las com os sorrisos que tinha ensaiado e com os olhares que mais tarde inspirariam as palavras geradas para suavizar o momento: as espontâneas, e as cercadas de arame farpado, dissimulado pela brisa do fim de tarde. Em frente ao espelho enferrujado que podia não ser velho, vestiu o seu melhor fato, que guardava sigilosamente numa grade de madeira forrada com jornais desde o dia em que lho ofereceram sem saberem. Com as mãos molhadas de ansiedade, ajeitou e desajeitou o cabelo desgrenhado até que não parecesse o seu. E condecorou-se. Bajulou-se. Sentado na cama de colchão de palha, onde os pés não tinham direito a um espaço assente para repousar, engraxou o bico dos sapatos, que de baile só conheciam o da lavoura diária. Encheu o peito de ar e de perfume, levantou a pesada porta de madeira que se confundia com o soalho do sótão e desceu as escadas de mão ante mão e de pé ante pé, com o cuidado de quem se pode desfazer em realidade através de um qualquer contacto imprevisto com o que já lá estava antes da história começar. Hoje não era um dia qualquer. Ia vê-la.

De costas para o altivo espelho de moldura dourada, ela repensava as palavras que não haveria de dizer. Olhava para a janela recortada pela cortina de organdi azul e adivinhava o tempo que não iria ser de chuva. Do guarda-fato de madeira robusta esculpida, só lhe surgiam vestidos vistosos, de folhos exuberantes e cores fartas. Nada do que ela procurava. Sem olhar para o espelho que a aguardava, tirou debaixo da cama um baú de madeira bem cuidada, apesar do pó inevitável, e abriu-o esperançosa. No formoso baú encontrou uma boneca de porcelana, de cabelo loiro e olhos azuis; duas fotografias de família amareladas pelo tempo em que não olharam para elas; e dois rolos de tecido branco, baço, que ela desenrolou com um sorriso florido nos lábios. De sonhos numa mão e tesoura noutra, em meia hora, porque não era preciso mais, tinha um vestido simples e pobre, brilhante, deleitado em cima das exageradas dimensões da sua cama, feita à partida para o seu corpo de menina. De vestido leve no corpo e cabelo por arranjar, foi a correr que ela trespassou o austero portão de ferro da sua casa, em direcção à fonte da vila.

Quando ele chegou à fonte, ainda o sol rejubilava alto, encandeava a calçada e fazia lacrimejar a mármore salpicada pela água que corria fresca da nascente decorada. Pelo calor ou pela falta de afazeres na rua àquela hora, a vila parecia deserta. Não havia viva alma naquela praça que pudesse presenciar o tão esperado encontro que ali ia ter lugar. Sentado no beiral da fonte, sentia-se derreter debaixo do fato mal engomado. O suor manchava-lhe a camisa e os pensamentos – e o relógio que não tinha, teria sido útil para lhe dizer que ela não iria chegar. Sem relógio, ele esperou sentado, resistindo à tentação que o assolava de minuto a minuto, em aliviar a estância de brasas em que se tornara a sua cabeça, na corrente límpida, nessa hora divinal, que para além da companhia lhe daria esperança, mas que lhe desmancharia o penteado.
Desolado pelo que não conseguia explicar, deixou a fonte sem olhar para trás e, no mais vagaroso passo que conhecia, carregou as palavras ao colo, adormecidas pelo embalo, até ao reconforto do seu pequeno sótão.

Quando ela chegou à fonte, o sol parecia-lhe então atordoado, graças aos tecidos coloridos regados de flores que os populares haviam pendurado das varandas e que cobriam quase toda a praça, providenciando-lhes a sombra desejada. Era dia de festa na vila. Parecia-lhe impossível como é que naquela pequena praça havia espaço para uma vila inteira de habitantes, os seus visitantes, e para as suas danças festivas em redor do acordeonista. Crente de que ele a chamaria quando a visse, centrou-se em procurar um lugar sobre a mármore fresca da fonte, mas por sinal havia bem mais pessoas com o mesmo propósito que ela. Por isso, e porque não era importante, esperou de pé. O relógio que havia herdado da sua mãe como testemunho de outras gerações que a antecederam, dizia-lhe que o tempo passava depressa e que, pior que isso, já tinha passado várias vezes no mesmo dia por aquele mesmo sitio, pela mesma fonte, deixando-a lá uma e outra vez, à espera. A brisa de fim de tarde chegava, por entre a multidão agitada, silenciosa, ociosa, dando asas à imaginação e pernas à paciência. E ela aceitava-a benevolamente, como a um copo de água que não se rejeita, enquanto se imaginava de pé sobre o beiral da fonte, de braços abertos a recebê-la, numa praça então vazia de gente e cheia de vida. Quando acordou desse estado de não acordado sem dormir, a festa já tinha acabado, e deu por si sozinha junto à fonte a fixar, sem intenção, uma senhora que apanhava agora do chão os desperdícios que das festas sempre restam.
Ao não saber o que haveria de pensar, ela não pensou. E seguiu para casa.

Ele, que não dormia, nessa noite dormiu e sonhou com ela.
Ela, que dormia sempre, nessa noite não dormiu e sonhou com ele.
Porque o que eles não sabiam é que na pequena vila onde moravam havia duas fontes.




***
(Apesar de conhecer bem o sitio, a fotografia não é minha, foi retirada da net. Nela podem ver a fonte dos amores, em Portalegre. Apesar de agora estar um pouco diferente devido às obras que fizeram no local, continua a ser um ponto de passagem obrigatório para quem sobe a serra de S. Mamede e gosta de, de vez em quando, se desligar de tudo por uns instantes e desfrutar de uma paisagem bonita.)

08 setembro, 2010

From choice to change.

Para quem não sabe, hoje é o Dia Mundial da Fisioterapia.
Portanto, não se esqueçam de lhe dar os parabéns.
=)

07 setembro, 2010

Daquela menina e moça.















Estas fotografias foram tiradas no dia em que eu descobri o verdadeiro significado de… colinas! Tal não é o meu espanto quando em vez das muralhas que perseguia com os olhos desde o rossio, encontro a bela da vista do Largo da Graça, e vejo os benditos pedregulhos no monte ao lado. Não que isso fosse um problema, muito pelo contrário. Não há nada como descobrirmos por nós mesmos um sítio bonito, principalmente se for sem querer. Portanto, só tive que descer e voltar a subir. Quando por fim cheguei à entrada do castelo, acabei por nem entrar (sim, não me apeteceu pagar para ver Lisboa, quando a posso ter toda de graça). Seja como for, o principal já tinha visto e percorrido: porque a meta era o caminho.
Depois de um belo corneto numa mini esplanada à entrada do castelo lá fui eu, por entre estendais de roupa esbranquiçada; senhoras à janela a conversar, que desviam a conversa e o olhar à minha passagem, desconfiadas com aquela não esperada visita; crianças a correrem por aquelas pedras escorregadias, sujas de tempo; e cada recanto daquela cidade a pousar debaixo do sol, extasiado, completo. E os cheiros… não, Lisboa não me cheirou a flores, mas à medida que percorria o bairro de Alfama (sem saber ao principio que era aí que me encontrava), foram tantos os perfumes que aí fui reconhecendo e saboreando como familiares, como crus, genuínos, que parei - e reparei - que naquele sitio tão diferente daqueles a que me ensinaram a chamar como meus, também se criam vidas, endereços, lares. Pessoas. As pessoas que fazem esses lares.
E assim continuei, num cansaço unicamente de corpo, a descer por entre as ruelas que ali são avenidas. E a encantar-me. Por uma cidade que a obrigação não me deixava ver, e a rejeição à priori não me deixava sentir.
Quem sabe se um dia não falarei em saudades desta terra. Onde falando sou turista, mas que, e talvez por isso, gosto de a viver.

02 setembro, 2010

Gargalhada aluga-se.


Como já alguém dizia...
Também isto vai passar.
Até lá?
Não sei.

Também tenho direito a não saber de vez em quando.
A fechar os olhos, a fingir que tapo os ouvidos.
A não ser racional.
A cancelar-te e dizer que é normal.

01 setembro, 2010

Falemos só do que é importante. Só hoje.

“A máquina fotográfica pode revelar os segredos que o olho nu ou o espírito não captam, tudo desaparece excepto o que focámos no quadrado. A fotografia é um exercício de observação e o resultado é sempre um golpe de sorte. Essa procura é sobretudo espiritual. Procuro verdade e beleza na transparência de uma folha no Outono, na forma perfeita de um caracol na praia, na curva de umas costas femininas, na textura de um antigo tronco de árvore, mas também noutras formas escorregadias da realidade. Algumas vezes, ao trabalhar com uma imagem no meu quarto escuro, aparece a alma de uma pessoa, a emoção de um evento ou a essência vital de um objecto, nessa altura a gratidão explode no meu peito e ponho-me a chorar, não consigo evitá-lo. É para essa revelação que aponta o meu ofício.”

Retrato a sépia, Isabel Allende.

E é também por isso que eu não troco um álbum de fotografias por um vídeo. Porque, a não ser que passemos a mesma cena uma e outra vez, ainda assim, haverá sempre uma tendência para vermos aquilo que quem filmou viu, aquilo que os que foram filmados viram, passando-nos mais uma vez despercebidos, os pormenores da realidade que poderiam mudar toda a história.
Uma fotografia dá-nos tempo, para percorrê-la, palpá-la. Numa fotografia temos uma parte daquele que é fotografado, guardado; temos aquilo que quem o fotografou tentou guardar; e temos aquilo que aquele que a pôde ver mais tarde observou, sentiu. É aí, algures entre cada um destes instantes, que repousa a verdade. E é através dela, que eu troco a memória pela imaginação e procuro as recordações que não tenho; que tento ouvir aquele tom de voz que imagino pelos contornos da face e do pescoço adornado; que tento sentir aquele cheiro que se adivinha pelos cabelos encaracolados e a roupa imaculada. E, acima de tudo, tento comparar com aqueles que conheço, os traços, as cores que estão para além do preto e do branco, os gestos e os jeitos que se desvendam pela forma da boca, dos olhos, do nariz, e que me garantem que aquela pessoa que ali vejo, continua presente, ainda que, por pedaços repartidos entre os seus.
Esta jovem, que aqui vos deixo hoje, chama-se Brígida. Morreu quando eu tinha 4 anos havia 4 dias.