26 março, 2008

V

Se o mundo fosse uma grande tela branca e a mim me fosse dado o direito de a pintar, eu usaria todas as cores que não conheço, todos os traços e formas cujo nome me é estranho, todos os rostos que ainda não conheci, todos os lugares que nunca vou conhecer. Nas ruas estreitas de calçada rude, desenharia pés descalços e enegrecidos pela poeira, correndo atrás de uma velha e esfarrapada bola de trapos. À porta das casas de paredes brancas e janelas azuis, sentadas sobre o pequeno degrau da entrada, senhoras fariam rendas e picôs, trocando experiências e deveres com as demais, sempre atentas às brincadeiras e travessuras dos mais pequenos. As cidades seriam pequenas povoações espalhadas aqui e acolá, que entre si apenas diferiam no lugar onde se tinham estabelecido. Em cada centro e em cada avenida, a música viria de todo o lado: do chão, das paredes, dos arvoredos, do céu, das fontes, e principalmente, das pessoas. Não haveria quem não cantasse por essas ruas fora, fosse por que razão ou por que sentimento mais forte, ninguém teria vergonha de o cantar aos ouvidos do seu mundo. Melodias e canções improvisadas se misturariam numa combinação perfeita na brisa sempre amena com aromas de alecrim. Quando a felicidade era unânime, as ruas outrora locais de trabalho ou passeio, viravam verdadeiros palcos movediços, onde personagens reais dançariam em sintonia com seus companheiros de vida e com a sua própria música, em passos desde sempre sabidos e bem ensaiados, como uma onda que cresce em alto mar, mas que jamais chega a morrer na praia.
Aqui, nunca ninguém se sentiria só e a tinta não desbotaria com o tempo. A ilusão não seria pura, traria escondida entre seu mar de nevoeiro, verdades esvoaçantes prontas a aterrar sem pára-quedas. As diferenças seriam respeitadas e tidas apenas como sinais particulares de riqueza. E a dor… essa andaria sempre de braço dado com a esperança que, em suas mãos de seda, guardaria com mil cuidados e doçura a certeza de uma recompensa feliz, desde o princípio esperada ansiosamente. Sofrer seria inevitavelmente sinónimo de crescer, e mais, toda a gente saberia disso.
Se o desejo fosse esse, num sopro suave e veloz perderíamos, durante o tempo necessário, a forma humana para um estado de invisibilidade aos olhares alheios, para numa certeza reconfortante ver justificado no vazio o porquê da indiferença sentida e para que as lágrimas fruto das palavras não ouvidas e das flores não beijadas, pudessem correr em liberdade, sem a condenação de mentes julgadoras, questionando matérias sem resposta.
No meu mundo perfeito, tu olharias a lua e lembrar-te-ias de mim.

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