09 setembro, 2008

Nove.

Ela sabia que esse dia lhe pertencia. O terror desmesurado que trazia consigo desde aquele dia, logo se emancipou, selando-lhe os sentidos. O instinto incontestável de sobrevivência percorria-lhe o corpo, imóvel, zelando para que os seus pés se enterrassem na areia inquietantemente fria que abraçava o louco mar à sua frente. A sua paixão pelo mar era incoerentemente profunda. Mas o medo perante a imensidão onde não se conhecem tréguas, a deslocavam para casulos claustrofóbicos onde a única saída é a cega profundidade. Mas a única carreira ainda de partida era aquela. Em frente.

A espuma salgada fervilhava sobre a pele anestesiada, como um sangramento efusivo e descontrolado em contramão. O peito gelava, numa contagem decrescente de vida e crescente de liberdade. Não olhou para trás, porque esse caminho já o sabia de cor. Era em frente que queria ir. Era para baixo que o vazio sob os seus pés a levava. Foi quando a maré a trouxe: perfumada, decorada pelo luar: longe. Como um sopro asfixiante, sentiu-se elevada pelo colo da onda e envolvida no seu cobertor maternal: que em seus braços de frescura aconchegou-a, e perdeu-a para a escuridão. Para o nada. E é nessa altura que, à velocidade da luz, como um efémero arrepio, se sente vestida por um leve e incontornável arrependimento. Um som de pânico lhe percorre as entranhas. Sente os ouvidos esmagados pelo silêncio mergulhado. Os olhos suplicando por luz, fecham-se, contrariados pela evidência. O pensamento não existe: alivio. Pânico. Apenas porque tem de ser assim, movimenta os braços e as pernas em gestos largos e pouco decididos. Rendeu-se, mas não desistiu. Por fim desistiu, mas não perdeu a esperança. Sabe por que não a perdeu, mas não sabe por que a tem. Deixa-se levar pelo peso descoordenado do próprio corpo até à escuridão. Os pulmões gritando por vida pareciam querer rebentar dentro de si mesmos. Um ardor cortante a percorre por dentro. Vozes imperceptíveis sem remetente eclodem de todos os lados. Imagens mais que nítidas lamentam as escolhas. Rostos sãos e tristes relembram o que não volta. A dor de todas as horas que não renuncia…
Noite. Nove. Estrelas. Liberdade.


(Posteriormente publicado em
Fábrica de Letras, desafio de Agosto "Uma longa viagem".)

2 comentários:

Eduardina disse...

Que viagem tão triste, sem o prazer do retorno!Texto muito emotivo!

Sandra Castelo disse...

Que dor me causa este texto...
Bem escrito, mas dorido!

SC