22 setembro, 2008

Outono

Quando a Eva me contou que te tinhas mudado eu não acreditei. Não que isso não pudesse acontecer, afinal a casa já não vai para nova, mas sempre achei que isso não estivesse nos teus planos, pelo menos por agora. Pelo menos dessa maneira.

Cheirava a chuva e a pipocas doces. O ar estava despropositadamente abafado. Ia a caminhar para o carro, quando uma voz inconfundível e familiar adivinha o meu nome. O rosto remetente sorria: uns olhos grandes, dos quais nunca consegui decifrar a cor, atravessavam-me, doces e desassossegados.
Ainda nessa manhã, como poderia ter sido noutra, como era em todas, eu olhei para ele. Desde o dia em que mo deste que o guardo naquela gaveta. Ofereceste-mo, mas não me explicaste como deveria cuidar dele. Já pensei em pô-lo num vaso de pé alto ao pé da orquídea e regá-lo, esperando que recuperasse o brilho de outrora, mas ele não me pareceu muito agradado com a ideia. Uma tarde destas, peguei-o com jeitinho e pendurei-o por uma corda na varanda, confiando que quando sentisse o ar e o aquecesse delicadamente, rejuvenescesse e se lembrasse dos seus tempos de glória e de ser imprescindível e admirado, por tudo quando é ser vivo, que era. Mas também não resultou. Resignada, voltei a guardá-lo na gaveta da mesinha de cabeceira: um Sol abatido, fosco, de raios franzinos, lamentando-se, em silêncio.
Ela não se apresentou. Sabia que não precisava apresentar-se, assim como sabia que eu nunca a tinha a visto, assim como sabia que eu não a conhecia, assim como sabia que eu sabia quem ela era. Contou-me como passou por ti e te cumprimentou e tu fingiste que ela não estava lá. Contou-me como te perguntou o que estavas a fazer e porque tinhas o carro carregado de tudo. Contou-me como tu a olhaste: olhar vazio, inundado em dúvidas construídas sobre certezas: umas que conheces, outras que nem tanto. Explicou-me como, sem palavras, lhe pediste que não fizesse mais perguntas e que te deixasse sozinho. Disse-me que estava preocupada, e foi-se embora. Não sei para onde foi, mas eu não esperei para ver.

Foi assim que soube que te tinhas mudado. Não te telefonei a perguntar porquê, nem para onde, porque ainda antes de partires, disseste-me que tinhas voltado. E há vazios que pressupõem a inexistência de perguntas.
De todas as vezes que por lá passei, olhando de forma mais ou menos discreta, mais ou menos convicta, de todas as vezes, encontrei a janela fechada e a persiana corrida, com apenas um palmo, o mesmo palmo, de janela descoberta até ao parapeito. E de todas essas vezes, atravessei a rua, devagar, e através da noite espreitei pela persiana quase fechada. Uma noite mais negra que a da rua vivia-se no interior da casa.
Foi tudo o que fiz e culpo-me por isso. Apenas por isso.

Há momentos perpétuos e instantes mágicos. Ou porque assim nasceram ou porque assim as pessoas o viveram. Há palavras quase perfeitas, que preenchem os dias de forma perfeita. Porque o dito não pode ser dado como não dito, quando é dito de forma quase perfeita, apenas porque perfeito nada o é.
E há pinturas resplandecentes que atraiçoam o olhar e o acusam de cegueira e de falta de autoria...

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