29 outubro, 2009

Era uma vez uma casa. Numa outra vez, numa outra idade – quase a mesma – era uma vez o velho que vivia nessa casa. O velho não tinha nome. A sua mãe tinha sido rainha e o seu pai não tinha sido nada. A mãe morreu quando ele nasceu. O pai nunca mais viveu desde que a mãe morreu. Por isso, o velho não tinha nome. A casa era pequena, fria no inverno e quente no verão. Nas paredes enegrecidas pelo lume – que todos os dias, sempre à mesma hora, o velho acendia dentro da larga chaminé – não havia fotografias, não havia espelhos, não havia sequer um mal concebido calendário. O chão de pedra, de água só conhecia a salgada, que a mão pesada do velho escorraçava da face decalcada pelo excesso de tempo, sempre que um outro dia brotava: lentamente: tortuosamente.
O velho não gostava de falar. Só gostava de ouvir. Mas não falava nem ouvia: não falava porque não gostava e não ouvia porque não tinha ninguém para ouvir.
Às vezes parecia-lhe ouvir uma mulher a cantar. Naquelas vezes, que eram todas, em que ele acordava quando o sol nascia, e se deitava, na pequena cama de ferro onde nasceu, ainda o sol não se tinha posto. Em todas aquelas vezes em que ele ouvia a mulher a cantar e abria a porta que dava para a rua, a porta que dava para o jardim que já fora jardim, de flores e de vida, e saía, devagar, como se fosse a primeira vez.
A única lembrança que lhe dá peso à memória é a do dia em que ela morreu. Ele já não tinha pai, e tal como o pai já não tinha nada. Ela tinha tudo: menos vida de sobra. Quando ela era viva, ele nunca ouviu a voz dela e, talvez por isso, a ouvisse tão bem agora. Porque ela tinha a voz que ele entendia. Cantava o que ele lhe pedia.


O velho que um dia foi novo, atravessa o jardim sem cores só mais uma vez - como sempre - só para a encontrar: perpétua, imóvel, irremediavelmente no mesmo sítio: sentada, encostada à, ainda branca, parede do casão, de olhos fechados e braços abertos. Sempre ali, à espera que ele chegue e se sente, calado, imóvel, perto o suficiente para a olhar. Olhar e ouvir, porque ainda tem alguém para ouvir. E ela canta. E ele sente-a viva. E ele esquece-se. Ela pede desculpa. E ele morre feliz.

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