15 abril, 2010

Seria um dia de chuva normal, não fosse o facto de estarmos em Junho. A tinta azul da janela estalava de cada vez que o vento escorraçava a água aflita por pousar em qualquer canto escondido. Um raio ao longe, um estrondo perto – um clarão que mata à distância, uma batida forte que estoura cá dentro.
Se a trovoada era motivo de aflição para alguns, para ela era mais um bom motivo para se ir sentar junto à janela, à espera da noite que não tardaria. Da janela não via mais do que uma casa, onde junto à portada de vidro fosco, adivinhava o vulto de uma senhora a costurar, havia já muito tempo, ora não fosse ela desperdiçar algum raio de luz fugidio que por ali vagueasse. Havia algo de especial naquela senhora cujos traços nítidos até agora só imaginara. Ou tinha que haver. Como poderia de outra forma poder explicar o facto das roseiras que esta plantara no improvisado quintal da frente da casa permanecessem carregadas de cores voluptuosas o ano inteiro, com chuvas e noites extenuantes que com certeza ultrapassavam, em pelo menos mil, as dos outros anos.
Foi enquanto se revolvia em pensamentos mágicos para explicar o infinito, que reparou num menino de calções vermelhos, agachado, e totalmente encharcado, encostado à parede lateral da casa da sua vizinha ilusionista. Não lhe conseguia ver o rosto, que escondia entre os braços entrelaçados sobre os joelhos, aparentemente feridos. Entre os dedos, abreviava o que se assemelhava a um lenço branco. Preocupada com a criança – ou com a sua exoneração – fitou a chuva, talvez numa tentativa de a abrandar, e saiu, para a torrente que se debatia pelas ruas.
Quando chegou junto ao intacto roseiral, do rapaz já não havia sinal. No chão, uma poça de água tingida de branco, desdobrava-se em mil caminhos pelas pedras truncadas da estrada. E por entre a aparatosa chuva, um doce aroma a rosas aproximou-se dela, em sintonia com uma voz inesperada, que recebe sobressaltada:
“- Por mais que tente, será sempre tarde demais.”
Junto à porta aberta está a vizinha, de sorriso vago, a olhar para um relógio de bolso que segura na pequena mão: a mão de uma menina que não terá mais que dez anos, porque a vizinha não terá mais que dez anos. Sem desviar o olhar do relógio, retira do bolso do pequeno avental uma fita branca que enrola à volta do relógio. Nesse momento, em vez de chuva, desbocam palavras das nuvens cinzentas. E de onde outrora rompiam trovões e esboços desenhados no céu, ecoam violinos e acordeões. E o relógio da vizinha cansa-se, como o dia que se faz noite, como uma prece que se desanima, que se esvaece, só porque alguém soprou.

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