23 agosto, 2010

"The rest is still unwritten."

Havia fado no coreto nessa noite.
As ruas praticamente intransitáveis devido à enchente de carros enfileirados à procura de um recanto para se acomodar, em lugares que já estão para além de ocupados, denunciam a chegada de mais uma noite de verão, numa cidade que se vê alumiada e pronunciada em relativos sotaques por esse país adentro, sem saber ao certo como, ou desde quando, terá passado de um porto calmo a um cortejo de transeuntes bronzeados a cheirar a protector solar e sardinhas. Não fosse o meu desejo por calor e por sol sempre disponível, quase que me revezaria por aclamar a chegada prematura do inverno, perante esta confusão de pessoas e respectivos altifalantes, que não me deixam sequer ver onde calco os curtos passos.
Avizinhando-me do coreto, paro agora para aliviar a vista esfalfada de ver vultos e chão, e tento-me concentrar naquele doce excerto de nós que ali se apregoa, sem que lhe seja dado o devido valor. Duas senhoras, jovens, nos cantam alternadamente lá do alto, fados imortalizados por outras vozes, para consolo dos que ali ainda lhe concedem o devido silêncio, apesar do reboliço que a noite se vê rematada a suportar. Talvez por efeito da minha posição relativamente às colunas instaladas junto ao coreto, o som chega-me tosco, sendo-me difícil discriminar as palavras entoadas e percepcionar-lhes um sentido, o meu sentido. Na procura de perfeição, não para o que está a ser cantado, mas para o que me chega, circundo o público atento até os meus ouvidos me ancorarem mesmo de frente para as duas senhoras. Mas se os ouvidos se aquietam pelo lugar afortunado que encontraram, já os olhos descrentes e perplexos, se arregalam desconcertados, presos àquele em que não acreditam mas confiam, ali mesmo, indiferente, represado naquele momento, a pesados e curtos passos de distância, mesmo à sua frente. Os olhos que não encontram outros olhos, apenas um vulto de fábulas dissimuladas, fogem deliberados, cruzando no percurso entre a lua e o chão, o bater alvoroçado do coração, como quem encontrou o procurado.
É de olhos que não querem ver postos no chão, que me deixo levar pelo ritmo acelerado do coração atordoado, que sem hesitar perante o desejado, se desfaz em passos curtos e rápidos para longe, o mais longe, num constante desvio sem sinalização entre a distraída multidão.
“Por trás do espelho quem está, de olhos fixados nos meus?”
Já a música se deixara de ouvir havia quinze corridos e suados minutos e ainda as minhas pernas tremiam que nem varas verdes sobre areias movediças, embaraçadas com tamanha contradição de desejos. Porque elas não sabem que o que as move não é feito de obstinação, como não sabem que nem o que fica deve ser dado como certo; nem que a única ousada solução, seria dar como terminada a perfeição, rodar sobre os atritos do pensamento e correr para onde já não interessasse se haveria música ou não, porque a intenção já não seriam explicações anestesiadas, mas a possibilidade de agarrar no lápis e no papel amarrotado, libertá-lo das opressões inundadas de antecedentes, e riscá-lo como quem não sabe escrever ou não tem histórias para contar. Pintar um fundo denso sem sombras e desafiar as certezas que não deixarão de o ser, chegar ao pé de ti e, agora sim, poder dizer: “Olá, eu sou a Nádia. E tu?”. Como se fosse possível envergar outro caminho começando no mesmo ponto de partida. Como se a memória fosse só ficção manipulável, que se afasta ou se aproxima no ímpeto de chegar à outra margem, sempre à outra margem. Ou talvez seja.
E assim se muda de embarcação. Sem bagagem.

Sem comentários: