14 setembro, 2010

A fonte

Em frente ao velho espelho enferrujado, ele lavava as palavras antes de as repensar. E enquanto as soletrava apertadas entre si, perfumava-as e enfeitava-as com todas as vírgulas e entoações que conhecia, experimentando-as, atraiçoando-as, enquanto ousava combiná-las com os sorrisos que tinha ensaiado e com os olhares que mais tarde inspirariam as palavras geradas para suavizar o momento: as espontâneas, e as cercadas de arame farpado, dissimulado pela brisa do fim de tarde. Em frente ao espelho enferrujado que podia não ser velho, vestiu o seu melhor fato, que guardava sigilosamente numa grade de madeira forrada com jornais desde o dia em que lho ofereceram sem saberem. Com as mãos molhadas de ansiedade, ajeitou e desajeitou o cabelo desgrenhado até que não parecesse o seu. E condecorou-se. Bajulou-se. Sentado na cama de colchão de palha, onde os pés não tinham direito a um espaço assente para repousar, engraxou o bico dos sapatos, que de baile só conheciam o da lavoura diária. Encheu o peito de ar e de perfume, levantou a pesada porta de madeira que se confundia com o soalho do sótão e desceu as escadas de mão ante mão e de pé ante pé, com o cuidado de quem se pode desfazer em realidade através de um qualquer contacto imprevisto com o que já lá estava antes da história começar. Hoje não era um dia qualquer. Ia vê-la.

De costas para o altivo espelho de moldura dourada, ela repensava as palavras que não haveria de dizer. Olhava para a janela recortada pela cortina de organdi azul e adivinhava o tempo que não iria ser de chuva. Do guarda-fato de madeira robusta esculpida, só lhe surgiam vestidos vistosos, de folhos exuberantes e cores fartas. Nada do que ela procurava. Sem olhar para o espelho que a aguardava, tirou debaixo da cama um baú de madeira bem cuidada, apesar do pó inevitável, e abriu-o esperançosa. No formoso baú encontrou uma boneca de porcelana, de cabelo loiro e olhos azuis; duas fotografias de família amareladas pelo tempo em que não olharam para elas; e dois rolos de tecido branco, baço, que ela desenrolou com um sorriso florido nos lábios. De sonhos numa mão e tesoura noutra, em meia hora, porque não era preciso mais, tinha um vestido simples e pobre, brilhante, deleitado em cima das exageradas dimensões da sua cama, feita à partida para o seu corpo de menina. De vestido leve no corpo e cabelo por arranjar, foi a correr que ela trespassou o austero portão de ferro da sua casa, em direcção à fonte da vila.

Quando ele chegou à fonte, ainda o sol rejubilava alto, encandeava a calçada e fazia lacrimejar a mármore salpicada pela água que corria fresca da nascente decorada. Pelo calor ou pela falta de afazeres na rua àquela hora, a vila parecia deserta. Não havia viva alma naquela praça que pudesse presenciar o tão esperado encontro que ali ia ter lugar. Sentado no beiral da fonte, sentia-se derreter debaixo do fato mal engomado. O suor manchava-lhe a camisa e os pensamentos – e o relógio que não tinha, teria sido útil para lhe dizer que ela não iria chegar. Sem relógio, ele esperou sentado, resistindo à tentação que o assolava de minuto a minuto, em aliviar a estância de brasas em que se tornara a sua cabeça, na corrente límpida, nessa hora divinal, que para além da companhia lhe daria esperança, mas que lhe desmancharia o penteado.
Desolado pelo que não conseguia explicar, deixou a fonte sem olhar para trás e, no mais vagaroso passo que conhecia, carregou as palavras ao colo, adormecidas pelo embalo, até ao reconforto do seu pequeno sótão.

Quando ela chegou à fonte, o sol parecia-lhe então atordoado, graças aos tecidos coloridos regados de flores que os populares haviam pendurado das varandas e que cobriam quase toda a praça, providenciando-lhes a sombra desejada. Era dia de festa na vila. Parecia-lhe impossível como é que naquela pequena praça havia espaço para uma vila inteira de habitantes, os seus visitantes, e para as suas danças festivas em redor do acordeonista. Crente de que ele a chamaria quando a visse, centrou-se em procurar um lugar sobre a mármore fresca da fonte, mas por sinal havia bem mais pessoas com o mesmo propósito que ela. Por isso, e porque não era importante, esperou de pé. O relógio que havia herdado da sua mãe como testemunho de outras gerações que a antecederam, dizia-lhe que o tempo passava depressa e que, pior que isso, já tinha passado várias vezes no mesmo dia por aquele mesmo sitio, pela mesma fonte, deixando-a lá uma e outra vez, à espera. A brisa de fim de tarde chegava, por entre a multidão agitada, silenciosa, ociosa, dando asas à imaginação e pernas à paciência. E ela aceitava-a benevolamente, como a um copo de água que não se rejeita, enquanto se imaginava de pé sobre o beiral da fonte, de braços abertos a recebê-la, numa praça então vazia de gente e cheia de vida. Quando acordou desse estado de não acordado sem dormir, a festa já tinha acabado, e deu por si sozinha junto à fonte a fixar, sem intenção, uma senhora que apanhava agora do chão os desperdícios que das festas sempre restam.
Ao não saber o que haveria de pensar, ela não pensou. E seguiu para casa.

Ele, que não dormia, nessa noite dormiu e sonhou com ela.
Ela, que dormia sempre, nessa noite não dormiu e sonhou com ele.
Porque o que eles não sabiam é que na pequena vila onde moravam havia duas fontes.




***
(Apesar de conhecer bem o sitio, a fotografia não é minha, foi retirada da net. Nela podem ver a fonte dos amores, em Portalegre. Apesar de agora estar um pouco diferente devido às obras que fizeram no local, continua a ser um ponto de passagem obrigatório para quem sobe a serra de S. Mamede e gosta de, de vez em quando, se desligar de tudo por uns instantes e desfrutar de uma paisagem bonita.)

1 comentário:

sOfty disse...

Para quando um bestseller?
Beijinho*