04 março, 2008

IV

Comecei o dia a pensar em ti. O vidro da janela do meu quarto parecia não suportar a imensa fúria do vento que impetuosamente esmagava pesadas gotas de chuva contra um difuso e distante reflexo, triste, que parecia enclausurado lá fora, por entre a maré revolta e demolidora deste vento que não dá tréguas e desta chuva que teima em cair quando já não é devida. É noite…Ainda o sol não se atreveu a despertar para quase inutilmente tentar impor-se por entre as grandes nuvens negras que sem remorsos entristecem este dia que ainda não começou, assim como este ser que me olha fixamente do lado de fora... olhar pesado, interrogador, de quem não entende o porquê de estar ali. Rosto que busco por entre os corredores enevoados da minha memória, olhar que se esconde por entre as sombras da noite e que parece gritar em silêncio por alguém que o leve para porto seguro, longe desta gélida noite de Inverno.
Levanto-me. É hora de começar a despachar-me para a ainda longa viagem que me separa de quem eu preciso.
Uma distância que percorro ansiosa, mas nostálgica... É, sempre gostei de viajar, de percorrer com os meus olhos todos estas ruas e planícies, de inspirar com fervor o cheiro molhado da terra lavrada, inalando o fresco aroma dos pinheiros e das doces mimosas, de reconhecer aqui e ali lugares que me são familiares, apesar de nunca os ter visitado na maioria dos casos, mas reconheço-os à distância, pela naturalidade e simplicidade imutáveis com que percorrem o tempo e nos contam histórias imortais gravadas nesta terra e guardadas no silêncio destas ramagens, que não conhecem mais nada para além do lugar onde nasceram. Como isso lhes é suficiente e tranquilizante.

Chegámos. Sinto já o cheiro do limoeiro que desde sempre me recebe junto à porta desta casa onde gerações cresceram e aprenderam a viver. Como está grande o meu pequeno Figo... e como parece contente apesar de todos estes anos que já cumpriu neste lugar que lhe destinaram sem outra escolha lhe oferecerem.
A horta, os animais, a terra, as pedras com que a minha imaginação de criança se deliciava horas e horas. As paredes caiadas, o telhado velho, o chão gasto, o casão, a cabana improvisada de tantos anos, a pequena varanda de onde viajo incansavelmente de estrela em estrela em noites quentes de verão. Os caminhos de terra, o poço, a figueira, tudo no lugar que lhe pertence, tudo como sempre conheci. E por momentos, sinto que o mundo é perfeito, ou pelo menos este, também meu lugar, aqui, em pleno alto Alentejo.

O mesmo sorriso de sempre nos aguarda junto à porta. Espelho de uma alma desgastada pela vida de trabalhos no campo onde sem folgas ou muito menos férias, se vive um dia de cada vez… E de sapatos gastos e roupa velha, seja na geada ou sob a chuva que filtra os escassos raios de sol no Inverno, ou debaixo do esgotante e arrasador sol de verão, os afazeres no monte parecem nunca ter fim. Rosto cansado, de quem dos deveres nunca descuidou, nem sabe o que isso é. Não são escolhas, são necessidades que ditam com o hábito aquilo em que cada um se torna e se transforma de corpo e mente e, para quem vive no campo, sem retorno também. Essas pessoas podem até mudar de vida, mas felizes longe deste seu mundo, não o serão jamais.

Olho o céu agora limpo, e recordo um dos meus sonhos mais bonitos. Livre, voava sobre a casa, sobre as árvores, percorrendo a vários metros do chão a estrada que parte do monte e que descansa no horizonte. Como foi bom sentir a brisa morna bater-me na cara, como é feliz a liberdade.

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