19 julho, 2010

Clam[destino

Aquele não era só mais um espectáculo. E apesar de ninguém lho ter dito, ela sabia que essa certeza não lhe pertencia de forma exclusiva. Há muito tempo que sonhava com aquele solo: mas há muito menos tempo que sabia que pelo menos um lugar da plateia ia estar preenchido.
Enquanto aguardava pelo grito sempre pontual do Sr. João, admirava o nervosismo transparente, quase tocável, que irradiava dos gestos das bailarinas principiantes que se precipitavam como um novelo apertado sobre a abertura do cenário, na procura de um rosto que lhes certificasse que estava ali para as ver – como se isso fosse tudo, ou como se isso devesse sequer ser importante. Mal sabiam elas que quando entrassem em palco não iriam ver mais face alguma, ou presenciar qualquer conversa inoportuna, entre os previsíveis estrupidos de espanto ou o timbre dos sorrisos quando se consentem; que não iriam sentir mais nada além do ritmo da música que dissimula a verdade e corrige a aparente loucura, dando nome e catadura aos movimentos crus, abrasados, que lhes percorrem o corpo e dão vida a cada poro. Não sabem ainda, que a beleza está no desfrutar do que a visão não enxerga, e que a fantasia está no poder ser só corpo – aquele corpo que o pensamento quebrantado, enrugado, consegue agora vislumbrar do alto do chão onde se deleita, lamentando os estragos irreversíveis a que predispusera o seu exímio portador. Não sabem ainda, que é nessa distância sem pecados que se libertam e se abraçam dentro de si mesmas, até que a ultima nota da orquestra se erga até à cobertura do auditório e se consuma num leque de palmas crescentes.
Enquanto mergulha as quase estreantes pontas brancas na caixa de pó de talco junto do palco, por instantes, quase aceita negociar com o desejo e esquecer-se do sonho por ser em que está prestes a embarcar, ao lembrar-se do dia em que lhe disse que gostaria de tê-lo lá, o mesmo dia em que ele disse que não iria faltar, o mesmo dia em que ela teve a certeza. A sua primeira certeza.
Ao chamamento do Sr. João, Clara entrou no palco. O vestido azul que envergava salientava a leveza com que corria até à sua posição, como se soubesse voar. Porque nesse dia ela podia voar. Olhando uma última vez para o público, pousando além do sorriso que transpunha o óbvio, pode ver todos os lugares preenchidos: todos, menos um. Quando Yann Tiersen começou a tocar, só ela e os seus passos improvisados, mas sempre mais do que sentidos, ficaram. Porque não havia ninguém para ouvir o que a música lhes trazia, explicava, prometia. E entre o era uma vez e a palavra não proferida, a sala ficou vazia.

Sem comentários: