29 março, 2016

É um desejo universal. Uma certeza intrínseca. A de que seres tão complexos e tão melodiosamente desenhados não podem tão-somente deixar de existir num sopro destinado, num golpe de acaso, ou em qualquer espaço de tempo sempre demasiado pequeno para fazer jus a tão esplêndido e harmonioso ser. Apenas porque seria inacreditavelmente estranho que a nossa mente, a nossa tão viva mente, depois de tanto aprender, criar, projectar e assimilar, se desfizesse em pó, sem deixar uma prova, um qualquer rasto de luz de que esteve viva, de que pensou, sentiu, desanimou, acreditou. Teista ou ateu, a ideia de que ficamos depois de morrermos, algures a vaguear entre os que ficaram, é generalizada. E até aí, o egocentrismo do ser humano que fica, do que efectivamente vive, aflora-lhe à pele. Não basta toda uma cerimónia dedicada à dor e ao desembalo dos desafortunados que terão de continuar a viver, se não ainda o desejo de que o ser já morto perdure entre nós. E para quê? Não lhe bastará perder-se a si mesmo, para ainda ter que ser colocado na posição de espectador passivo, obrigado a encarar que o mundo continua a girar sem ele, como se não tivesse notado sequer a sua morte? Que as pessoas continuam a comer, a dormir, a trabalhar, a dançar, a chorar, a rir, exactamente como faziam antes de ele morrer. Querer que os nossos mortos fiquem, que zelem por nós, não é querer prolongar-lhes a vida, é querer prolongar o nosso afecto, o nosso rumo, as nossas esperanças. De que eles fiquem para nós, por nós. É um capricho do nosso ego que se espelharia, não numa bênção eterna, mas numa dor eterna. Um jogo a que a nossa esperança aplaude, claro está, sabedora de que o nosso próprio destino será também um dia nós próprios ficarmos eternizados nessa grande plateia. É esse o nosso desejo, vincado e obstinado, à deriva na ignorância do que desejamos.

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